07/08/2017 às 00h00 com informações de jota

Reforma tributária deve ser fatiada, diz Paulo de Barros

Ao JOTA, jurista diz concordar com estratégia de Temer e conta sobre sua relação com Jango

Depois de publicar mais de seis dezenas de livros sobre direito tributário, o paulistano – fruto do casamento de uma gaúcha com um pernambucano – diz ter “uma sensação estranha” ao ver a própria vida passada a limpo. As quase oito décadas de vida – meio século de carreira – foram recuperadas nas 450 páginas da biografia do jurista. A obra será lançada nesta terça-feira (8/8), no Museu da Casa Brasileira, em Sao Paulo.

Paulo de Barros continua ativo. Quer elaborar uma teoria sobre a regra matriz de incidência tributária, que elenca os elementos básicos de um tributo que devem estar nas leis que os instituem. A teoria é essencial para o controle de legalidade da criação de tributos.

“Encontramos notícias da regra em vários livros, mas sem maiores desdobramentos e sem perquirir dos fundamentos da regra matriz, dos fundamentos filosóficos e no campo da teoria geral do direito”, justifica o professor.

Na conversa com o JOTA, realizada numa tarde fria da capital paulista, o passado, o presente e o futuro se entrelaçam e se confundem. E como no fim tudo vira história, a entrevista que você lê abaixo foi concedida na mesa em que Rubens Gomes de Sousa escreveu trechos do que viria a ser o Código Tributário Nacional (CTN), de 1966.

Leia os principais trechos da conversa:

Propostas de reformas tributárias têm sido levantadas hoje assim como o foram nas últimas décadas. O senhor já disse que o maior obstáculo para uma reforma como essa começa com a composição da mesa – governo federal, 27 governadores, mais de 5 mil prefeitos e os contribuintes com uma vasta paleta de interesses. Precisamos de reformas outras antes de pensar na tributária?

O Brasil é carente de reformas, né? E o projeto do Michel [Temer] é tocar todas as reformas possíveis, mas a reforma tributária é muito difícil porque nosso país tem uma complexidade jurídica e compositiva muito grande – ordem municipal, estadual, federal, nacional e total. São sistemas de regras que convivem em tensão. Até hoje não houve nenhum passo em termos de reforma tributária. Falam de reforma há 40 anos e não sai.

Tive uma conversa com presidente Michel Temer durante uma hora e eu aplaudi a iniciativa de fazer modificações tópicas – no PIS, Cofins, depois no IPI. Porque se não for desse jeito não sai e não sai mesmo. Os interesses são muito contrapostos. Todos devem participar de uma reforma que se pretenda democrática, mas há os Estados produtores, os Estados consumidores e agora a guerra nos municípios também, de modo que não se consegue dar o primeiro passo.

Precisamos de racionalidade. O sistema brasileiro, no meu entender, é bom. Aprendi isso em reuniões internacionais quando um professor do Equador, por exemplo, ficou espantado com o curto espaço de tempo entre uma decisão de governo e sua aplicação na prática. Lá existe uma série de entraves. A carga tributária é alta no Brasil, mas não é aquilo também que dizem. Com essa carga o Brasil cresceu 7,6% em 2010.

Temos uma litigiosidade assustadora em matéria tributária. Ao que o senhor atribui isso?

São interesses vários postos em choque – a guerra fiscal dos estados e dos municípios são prova disso. A convivência das cinco ordens jurídicas que existem no Brasil é difícil. É um sistema altamente complexo.

E o que podemos pensar como elemento essencial para uma reforma tributária?

Simplificação. Eu, aliás, falei com o presidente em racionalização. Ele me disse “não, Paulo, é simplificação” [imitando o jeito de falar de Temer, com o indicador levantado]. Não é possível simplificar sem dar racionalidade ao sistema. É um jogo de palavras, mas é isso: simplificar o sistema tributário, mexendo topicamente em pontos que deem a menor repercussão e desgaste possível. Depois de algumas mexidas teremos feito uma minirreforma.

O senhor defende que o sistema, apesar de complexo, é bom. As redações das normas tributárias – leis, convênios, instruções normativas – são por vezes ambíguas, vagas. Não é desse ruído de comunicação que nascem os conflitos que desaguam nos tribunais?

Acontece que esses conflitos de comunicação são inevitáveis. Temos é que administrar esses conflitos porque eles não acabarão. A superfície do texto não vai permitir que se elimine essas dúvidas.

E como administramos isso?

Há uma comissão de redação e justiça que pode ser intensificada, para fazer um exame com mais força e intensidade e reduzir o ruído ao mínimo.

O Congresso aprovou recentemente o projeto de convalidação dos benefícios fiscais concedidos no âmbito da guerra fiscal. A classe política anunciou que a guerra fiscal chegou ao fim com essa aprovação. O senhor concorda com essa afirmação?

Não. Estamos convivendo com a guerra fiscal. Uma série de passos foram dados para cessar essa guerra, mas a criatividade dos entes públicos para satisfazer seus intereresses – legítimos, para aumentar sua arrecadação – isso vai longe. Me lembro quando escrevi sobre o assunto com o professor Ives Gandra Martins – naquilo que nós concordávamos – e chegamos a conclusão de que estaria longe a solução definitiva da guerra fiscal. Mas diminuiu a intensidade, não estamos numa guerra violenta, ela vem arrefecendo.

O Supremo Tribunal Federal não para de ser chamado a resolver conflitos tributários, federativos, como não poderia deixar de ser. Um tributarista seria bem-vindo ao plenário para lançar um novo olhar sobre esses temas?

Não faria mal não…

Na sua opinião, qual o perfil do ministro, desse tributarista?

Perfil é sempre um ideal. Uma pessoa equilibrada, que conheça os problemas nacionais, que tenha vivido esses problemas e que possa colocar com clareza para os outros ministros as diversas posições. Às vezes, os ministros até concordam em certos pontos, mas fica uma concordância que se perde porque não está organizada, sistematizada. Falta alguém ali que aproveite as palavras e as organize: “temos essas duas teses, vamos trabalhar com qual delas?”. Uma figura assim seria altamente oportuna nesse momento.

O senhor influencia a doutrina e a jurisprudência a partir da sua produção acadêmica, com os pareceres. Nunca teve vontade de influenciar a jurisprudência no papel de ministro do Supremo ou do STJ? Ao longo da carreira, o senhor pensou nesse caminho?

Uma vez houve essa cogitação, mas pensei bem e não me interessava, sabe?

Por quê?

O meu projeto de vida era incompatível. Eu dou aula na PUC e na USP quase todos os dias da semana, na graduação, na pós-graduação e na especialização. Além disso, tenho compromissos de palestras em outros Estados, a editora Noeses requer minha presença na edição dos livros, ainda tem o escritório. Teria que mudar inteiramente meu estilo de vida. Não me animei não. Tenho algum convívio com ministros do Supremo, que sempre se queixam da falta de liberdade e privacidade. Estão num coquetel e precisam esconder o champanhe. É uma vida sacrificada.

Como é ver a vida passada a limpo nas páginas de uma biografia?

É um envolvimento difícil porque lancei vários livros e levo isso com naturalidade. Mas esse, como diz respeito a minha vida e que expõe uma série de momentos da minha existência, vejo com uma sensação estranha. Não saberia explicar (pausa). Não fui eu que escrevi. Os autores fizeram uma pesquisa séria, mas observam de fora. Não é autobiografia.

O senhor tem inúmeros livros publicados e é reconhecido por ser um cientista do direito tributário. Olhando em retrospecto, ficou algo por fazer nessa produção acadêmica? 

Não diria que faltou, mas há coisas por fazer. Há complementaçoes, acréscimos que pretendo fazer – aliás, que já estou fazendo.

Qual é o projeto?

É sobre a regra matriz de incidência tributária, que é um ponto fundamental. Há muitos escritos sobre ela de forma esparsa, um pouco aqui e ali. E gostaria de fazer uma teoria sobre a regra matriz de incidência. Encontramos notícias da regra em vários livros, mas sem maiores desdobramentos e sem perquirir dos fundamentos da regra matriz, dos fundamentos filosóficos e no campo da teoria geral do direito. É um plano que tenho e que gostaria de elaborar.

Depois de tantas conquistas e reconhecimentos, o que move o senhor hoje?

É o mesmo entusiasmo que tive pelo estudo do direito tributário como pretexto para se chegar à teoria geral do direito e à filosofia do direito. Elas não têm fim, o direito tributário tem os seus limites. Eu sempre preguei que o direito tributário ou qualquer campo do conhecimento para ser aprofundado requer reflexões sobre filosofia e de teoria geral do direito. Na PUC estamos elaborando um projeto de semântica do direito tributário. Queríamos inicialmente estudar o direito de uma perspectiva semiótica, da sintaxe ou lógica à semântica e pragmática. A pragmática já é dada pelo professor Tércio Sampaio Ferraz. A lógica eu me propus a ensinar e venho trabalhando nisso há muitos anos e a parte semântica convidamos um professor da USP que não pôde assumir. Ficamos com o projeto truncado. Combinei com Tércio de ele espichar a pragmática para dar noções de semântica e eu faria o mesmo no campo da lógica para os alunos terem algum conhecimento de semântica. Agora estamos preparando o programa de uma cadeira semântica do direito.

Por que o senhor defende que o estudo do direito tributário passe pela filosofia do direito?

Tenho convicção plena hoje que qualquer estudo sério sobre mecânica, economia, sociologia, qualquer estudo, faça incursões na filosofia.

O senhor defende que é preciso ser fiel às premissas para se chegar às conclusões. Como o senhor conseguiu se despir das premissas fazendárias para colocar as vestes pró-contribuinte?

Passei 30 anos na Receita Federal – naquela época nem tinha esse nome. Esse tempo para mim foi precioso para eu dar um empurrão na minha vida acadêmica. A verdade é essa. Ficava à disposição do gabinete do ministro da Fazenda, o que me dava uma liberdade maior. Eu fazia estudos e pareceres internos, mas tinha liberdade para seguir a carreira acadêmica.

A vida acadêmica deu o equilíbrio entre os dois pólos?

Isso aconteceu, porque convivia muito com pessoas impregnadas dessa ideologia mais privativista. Mas procurei sempre estar num meio termo. Nunca fui um algoz da Fazenda. Mas temos que ter tributaristas de todos os estilos, os combativos a favor do contribuinte, a favor do Fisco. E a Fazenda hoje está muito bem aparelhada, pede pareceres quando a situação é difícil. Existe muita gente competente hoje atuando, a balança entre contribuintes e a procuradoria da Fazenda está bem equilibrada.

O senhor ajudou a formar gerações de tributaristas. Observando o mercado jurídico e a realidade de sala de aula, qual o maior desafio para um advogado que queira se especializar em direito tributário?

É tentar aplicar ao campo da realidade prática os conceitos que, em princípio, são conceitos teóricos. É fazer a ligação entre a teoria e a prática, entre a ciência e a experiência. Quando a pessoa começa a pegar esse costume, ela sente um entusiasmo muito grande. Quando começamos a explicar situações da vida prática com conceitos que estão lá em cima vemos que isso dá sentido de aprofundamento que não acontece fora dessa iniciativa.

O senhor trabalhou por alguns meses no gabinete do presidente João Goulart. Qual era sua função e como foi essa experiência?

Eu era o que se chama de oficial de gabinete, eu tinha uma mesa. O secretário particular do presidente é quem organizava os trabalhos, Eugênio Caillard. Os políticos da época tratavam muito bem o pessoal do gabinete porque era quem dava acesso às audiências. Por mim teria ficado lá. Eu tinha 21 anos, um carro ficava e minha disposição e me chamavam de doutor. Não queria outra vida.

E saiu por quê?

Estava fazendo a faculdade de direito e meu pai me deu um ultimato. Impositivamente ele disse: você tem que escolher, vem para São Paulo e retoma seus estudos ou fica aí. Uma posição bem radical (risos). Eu estava noivo, então aproveitei e vim, com dor no coração. Meu primo, José Carlos de Barros Carvalho, que ocupou a vaga. E meu primo teve dificuldades porque prenderam todo mundo do gabinete quando veio a revolução.

Com qual imagem ficou do Jango?

A melhor possível. Jango era um homem civilizadíssimo. Delicado, sabe? Às vezes ele entrava, passava e não cumprimentava muito efusivamente. Mas outras vezes parava, perguntava por um, por outro. Ele tinha uma grande capacidade de ouvir. Tenho uma admiração enorme por ele.

O senhor encontrou com ele depois do golpe?

Sim. Já tinha estourado a revolução e trinta dias depois os tanques estavam nas ruas. Meu tio, irmão de meu pai, era líder do governo e da maioria – naquela época era acumulada [senador Barros Carvalho, do PTB]. Ele se viu no dever de fazer um discurso entregando a liderança. Nesse discurso ele defendeu veementemente o Jango. Foi um discurso muito bonito. Como eu ia ao Rio Grande do Sul, porque tenho família lá, meu tio pediu para esticar até Jaguarão [município do RS] e procurar um fulano de tal, que me levaria a uma fazenda no Uruguai. “Eu quero que você entregue isso em mãos do presidente João Goulart”, meu tio me disse. Foi a maior aventura da minha vida.

Sobre o que você e Jango conversaram nessa ocasião?

Ele era muito amistoso, simpático. Estava de bombacha, tomando chimarrão. Ele começou a ler, mas pediu licença para terminar de ler depois. Fez alguns comentários, histórias sobre a amizade dele com o senador, meu tio.

Ele falou algo sobre o golpe?

Não, não. Nós demos como pressuposto. É algo que fica chato ficar lamentando. Mas ele estava muito saudoso do Brasil, a despeito de estar no Uruguai há pouco tempo. Ficaria ainda muito mais tempo por lá.