21/10/2019 às 00h00 com informações de O Globo

Com dívida 'irrecuperável', governos buscam cobranças fora da Justiça

Além de pagar cerca de R$ 2 bilhões por ano em dívidas ordenadas pela Justiça, o Poder Público no Brasil tem dificuldade em cobrar na Justiça os impostos devidos a ele por pessoas físicas e jurídicas. A morosidade do Judiciário, causada principalmente pelo congestionamento de ações desse tipo, vem levando a União, estados e municípios a buscar pagamentos fora da Justiça: no Distrito Federal, por exemplo, ações que cobram valores abaixo de R$ 5 mil já são arquivadas porque o erário gastaria mais para cobrar do que tem a receber.

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, por sua vez, já arquiva ações abaixo de R$ 1 milhão, valores que tenta cobrar extrajudicialmente, por meio de protestos ou por inserção em serviços de proteção de crédito. Mesmo assim, 80% do volume das cobranças no Poder Judiciário já é considerada irrecuperável, segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça, esse tipo de ação é a principal responsável pelo congestionamento do Judiciário. De todos os processos no Brasil, 39% são de execuções fiscais, cerca de 31 milhões.

A estimativa dos custos para os cofres públicos da utilização do Judiciário para cobrança de dívidas é difícil. O único levantamento até hoje sobre o gasto com ações de execução é de 2012 e calculou em R$ 4,6 mil o custo de cada ação em âmbito federal. Entretanto, 85% dos casos estão nos tribunais estaduais. Se esse custo por ação for aplicado também aos estados, isso significaria um gasto de R$ 17 bilhões ao ano.

Em razão disso, nos últimos anos, a União vem adotando medidas de desjudicialização: desde 2016, apenas cobranças com chance de êxito são impetradas na Justiça. Após a medida, a arrecadação da União aumentou em 500% no Poder Judiciário mesmo com a redução do número de processos. Nesses três anos, foram arquivados 1,5 milhões de processos.

Mesmo assim, atualmente, da dívida ativa de R$ 2,2 trilhões de reais, mais da metade desse valor já é considerado irrecuperável. São cobranças de empresas fechadas ou falidas, por exemplo, com processos que se arrastam na Justiça há décadas.

Medidas similares apenas engatinham onde importa, no entanto: nas esferas estadual e municipal, onde estão a maioria das ações de execução fiscal. A maior parte são cobranças de tributos pagos nas cidades. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, as execuções fiscais municipais chegam a 126 mil, comparadas a 4 mil execuções no âmbito estadual. Um projeto de lei proposto pelo senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) defende que esse tipo de cobrança saia dos tribunais.

Além desses valores, há também os gastos do erário com execução civil, em que a União não figura como autora, mas também tem que manter o aparato de cobrança judicial. A advogada Flávia Pereira Ribeiro, doutora em Processo Civil pela PUC, defende que o Poder Judiciário também deixe de atuar como órgão de cobrança para esse tipo de ações. Ela calcula uma economia de aproximadamente R$ 68 bilhões com a medida. Segundo a pesquisa do Ipea, o percentual de pessoas que questionam a dívida na Justiça é baixo.

— Segundo a Constituição, é atribuição do Poder Judiciário dizer o direito, dirimir conflitos, dizer quem está certo ou errado. Isso é jurisdição. Se nem mesmo está havendo a jurisdição possível dentro do processo de execução, o Judiciário está, de fato, sendo acionado para realizar meras cobranças — diz Flávia.

Há 15 anos, Portugal adotou um processo de desjudicialização e tirou as cobranças de dívidas do Poder Judiciário. No país ibérico, executores da dívida recebem de acordo com sua eficiência. Além disso, os custos do país com o Judiciário também caíram.

— Portugal é um país de cultura e sistema jurídico muito similar ao nosso e a desjudicialização da execução implicou aumento da efetividade, diminuição do custo do Estado e melhora nos índices econômicos, devido à diminuição do risco dos negócios — diz.

A maioria das execuções fiscais são cobranças de tributos municipais, como IPTU. No Distrito Federal, por exemplo, são 94 mil ações fazendo cobranças de IPTU, quase metade do total de execuções fiscais no Distrito Federal. Ações que cobram dívidas de ICMS, por outro lado, são apenas 1% das cobranças mas equivalem a 48% dos valor cobrado na Justiça.

Segundo Flavio Jardim, procurador-geral adjunto da Fazenda no Distrito Federal, o excesso de processos nos tribunais do Brasil faz com que ações com impacto real fiquem para trás.

— Nossa visão tem que se concentrar nos grandes devedores, o verdadeiros sonegadores. Pensar em desjudicialização é extremamente relevante porque o Judiciário gasta 1,3% do PIB — afirma.

Condenações na Justiça custam R$ 2 bilhões ao ano

Como se não bastasse a dificuldade para cobrar, o Poder Público também é obrigado a pagar graças a erros e dívidas do passado. Nesse caso, o governo federal gasta, em média, outros R$ 2 bilhões por ano para cumprir sentenças judiciais, como precatórios, que são valores que o governo é condenado a pagar na justiça, incluindo dívidas com pessoas físicas, empresas ou indenizações.

Esses valores também são resultado de falhas e malfeitos da administração. É o caso do Instituto Aerus, fundo de previdência de funcionários de empresas como a Transbrasil e Varig. O governo aprovou 26 empréstimos do fundo para as empresas. Ambas faliram e os funcionários ficaram sem aposentadoria. A União, que era responsável por fiscalizar os acordos mas não colocou entraves a eles, foi condenada a pagar a aposentadoria de 5 mil aposentados do Aerus.

Segundo o Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA), em agosto deste ano, a União deixou de pagar os valores a cerca de 5 mil aposentados unilateralmente, por considerar já ter pago sua parte do prejuízo causado aos ex-funcionários, mas uma decisão liminar reafirmou a responsabilidade do governo.

— O que o governo fez seria como estar preso, acordar um dia e sair da cadeia. A União autorizou 26 empréstimos para uma empresa falimentar. A responsabilidade do governo era fiscalizar e autorizar esses empréstimos e não fez — afirma o comandante Ondino Dutra, presidente do SNA.