03/12/2019 às 00h00 com informações de O Estado de S.Paulo

Recuperação judicial: entenda o que é e como funciona

Com lojas espalhadas por todo o mundo, a Forever 21, rede varejista de moda fundada em Los Angeles, na Califórnia, virou notícia ao confirmar que vai entrar com um pedido de recuperação judicial - , cerca de 350 lojas da rede, incluindo 178 nos Estados Unidos, devem ser fechadas. 

No Brasil, até agosto deste ano, a Serasa contabilizou 936 pedidos de recuperação judicial. Deles, 767 foram deferidos e 418 concedidos, sendo, de fato, aceitos pelos credores. Ainda que o número de requisições seja menor que o do mesmo período nos três anos anteriores, alguns casos emblemáticos, como da Odebrecht, têm feito com que o público se interesse bastante pelo assunto.

O que é recuperação judicial

De modo geral, a recuperação judicial é um processo mediado pela Justiça que busca evitar que uma empresa com dificuldades financeiras encerre suas atividades. Por meio dela, as organizações adquirem um prazo para continuar operando enquanto negociam suas dívidas com os credores sem o risco de terem suas dívidas executadas.

Para Armando Rovai, professor de Direito Administrativo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a melhor forma de conceituar recuperação judicial é entendendo-a como um remédio. “A empresa, quando está com uma crise, recorre à recuperação judicial como uma forma de prorrogar seus prazos de pagamento e, com isso, sair de uma situação indesejável”, salienta.

Instituída no Brasil pela Lei nº 11.101, de 2005, a recuperação judicial foi implementada em substituição à antiga Lei das Concordatas, de 1945, que concedia alongamento de prazo e/ou perdão de dívidas das organizações sem, contudo, contar com a participação de credores. Nesse contexto, segundo Rovai, a Lei da Recuperação Judicial foi elaborada para um contexto mais moderno, contemplando o momento histórico, político e econômico pelo qual o País passava.

“Atualmente, a lei tem uma estrutura muito mais antenada com as necessidades das empresas. Isso porque, desde quando foi implementada, ela sofreu modificações, teve fases distintas e os tribunais foram se adaptando às necessidades do mercado. Hoje, sem dúvidas, a lei funciona de uma maneira efetiva”, ressalta.

O professor da Faculdade de Direito da FGV do Rio de Janeiro Márcio Guimarães tem posicionamento um pouco distinto. “É claro que, em relação ao passado, a recuperação judicial progrediu muito. Mas precisamos avançar muito mais. Hoje, a lei não é eficiente. Existem pesquisas demonstrando que nem mesmo 30% das empresas que pedem recuperação conseguem cumprir o plano. Evidentemente, há casos de êxito, mas, para pequenas companhias, o processo não funciona. Se fosse um remédio, a Anvisa não liberaria, porque seria um remédio que mata”, afirma.

Está no Congresso o projeto de lei n.º 10.220/2018, que visa justamente realizar algumas mudanças na Lei de Recuperação Judicial. Encabeçada pelo deputado Hugo Leal (PSD-RJ), a proposta tem gerado controvérsia entre parlamentares e especialistas. Para Guimarães, o projeto é insuficiente pelo simples fato de não incluir todos os credores (embora polêmica, há proposta para incluir todos os credores, inclusive o Fisco), o que seria um passo fundamental para o avanço da recuperação judicial no Brasil.

Que tipo de empresa pode pedir a recuperação judicial

Toda e qualquer empresa privada com mais de dois anos de operação pode entrar com o pedido de recuperação judicial. O processo judicial não contempla estatais, empresas de capital misto e cooperativas de crédito ou plano de saúde, além de empresas que já tenham realizado outro pedido há menos de cinco anos e/ou são comandadas por empresários condenados por crimes relacionados a processos de falência.

Segundo Rovai, alguns requisitos, como o de tempo de funcionamento da empresa, têm como objetivo observar a “habitualidade e continuidade da atividade empresarial”. Segundo ele, normalmente, são três as características comuns das companhias que entram com o pedido de recuperação judicial:

- falta de pontualidade: a empresa não consegue arcar com seus débitos;
- crise financeira: o balanço fica insustentável;
- estímulo para continuidade: a empresa enxerga que a crise é sazonal e vê uma saída para a situação. Isso é o que distingue o pedido de recuperação judicial do de falência. 

Quando a empresa pode recorrer à recuperação judicial

De modo geral, as organizações recorrem à recuperação quando estão com dívidas atrasadas e também sendo exaustivamente cobradas pelos credores. Ainda assim, as condições nas quais uma empresa solicita a recuperação podem ser diversas.

Para Guimarães, no Brasil, as empresas tentam negociar de todas as formas antes de fazer o pedido. “A França, por exemplo, tem alguns mecanismos anteriores à recuperação (já que o processo está muito próximo ao fim da linha) que são extremamente efetivos. No Brasil não há esses mecanismos preventivos. Então, tenta-se negociar de todas as formas antes de fazer a requisição, mas isso, muitas vezes, não é suficiente”, pondera.

O que deve conter no pedido

Com base no artigo 51 da Lei 11.101/2005, alguns dos principais documentos que devem ser apresentados no pedido de recuperação judicial são:

- demonstrações contábeis relativas aos últimos três meses;
- balanço patrimonial;
- demonstração de resultados acumulados;
- apresentação do resultado desde o último exercício social;
- relatório gerencial de fluxo de caixa e de sua projeção;
- relação completa dos credores;
- informações completas dos funcionários;
- relação dos bens particulares dos sócios controladores e dos administradores do devedor.

Pela lei, a partir da homologação da recuperação judicial, a empresa tem 60 dias pra apresentar o plano de recuperação, sob pena de convolação em falência, e 150 dias para fazer a assembleia de credores. Ainda com esses prazos estabelecidos, o tempo de duração dos trâmites varia conforme a complexidade e as circunstâncias de cada caso.

Como funciona a recuperação judicial de uma empresa

Depois que o pedido de recuperação é aberto, com base na lei, os credores devem se encontrar na chamada assembleia-geral de credores para definir a solução que vai se materializar no plano de recuperação judicial. Nesse momento, são definidos forma de pagamento, prazos, descontos, entre outros detalhes referentes à garantia do crédito.

Para Rovai, os credores são essencialmente agentes e pessoas que têm relações negociais com o devedor, sendo que seu papel principal no processo de recuperação judicial é o da fiscalização da execução do plano aprovado. Normalmente, a empresa devedora tem uma dilação dos prazos e um desconto da dívida, o que a ajuda a prosseguir com suas atividades e seguir sua vida empresarial normalmente.

Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, incluindo até mesmo aquelas que, na data da requisição, ainda não estão vencidos.

Qual o prazo de duração da recuperação judicial

Segundo o artigo 61 da Lei 11.101/2005, o prazo para a empresa permanecer em recuperação judicial é de 24 meses. Porém, diz Rovai, esse tempo varia de acordo com cada caso concreto. 

Quais as consequências da recuperação judicial

A recuperação judicial tem uma função benéfica no mercado brasileiro, uma vez que possibilita que a empresa em crise se recupere e continue cumprindo com a sua função social, na opinião de Rovai. Os benefícios práticos que a empresa tem no curso do processo de recuperação judicial são os seguintes:

- suspensão das ações judiciais por 180 dias; 
- renegociação das dívidas;
- manutenção da operação do negócio. 

Para Guimarães, o País avançou muito desde o decreto lei de 1945. Sobretudo pela Lei 11.101, que aumentou bastante o alcance pela inserção de credores. Mas, ainda assim, persistem algumas falhas grandes, como a Fazenda Pública não ser alcançada pela recuperação. A recuperação judicial não inclui dívidas com o Fisco, o que significa que a recuperação é feita pela metade uma vez que só são renegociadas as dívidas privadas.

“O Brasil descola do mundo nesse quesito, pois, ainda que seja um auxílio estatal, o próprio Estado não ingressa para ajudar a crise passar. Além disso, as próprias garantias fiduciárias acabam atrapalhando o pedido de recuperação judicial. Absolutamente todos os credores deveriam estar submetidos à recuperação judicial”, complementa.

Quais as diferenças entre falência e recuperação judicial?

De acordo com Rovai, o primeiro ponto para distinguir a falência da recuperação judicial é que enquanto na primeira quem solicita é o credor; na segunda, quem pede é o devedor. Ou seja, “a falência é requerida pelo credor de modo a tornar publicizado que uma empresa não tem mais condições de atuar; já a recuperação judicial é um pedido de socorro”.

“Quando há uma laranja podre junto com as demais, você pode contaminar o saco todo. Então, qual é o caminho? Retirar a laranja estragada. O pedido de falência busca exatamente isso: retirar a empresa que não tem condições de atuar no mercado porque ela pode levar à quebra de outras empresas”, complementa.

Para Guimarães, quando uma organização enfrenta uma crise, e isso vai acontecer em menor ou maior escala com todas as empresas, normalmente, ela precisa de um auxílio para se manter com as portas abertas. Quando essa crise é muito intensa, há a hipótese do pedido de falência, via pela qual as dívidas da empresa tentam ser liquidadas para minimizar o impacto.

“Vale complementar que muita gente acha que a falência acaba com a atividade, o que é equivocado. Ela encerra a sociedade (que é a exploradora da organização), mas a atividade pode ser vendida. O pedido de falência pode ser utilizado como uma espécie de renascimento da empresa”, destaca.

Por outro lado, quando a própria sociedade gestora da empresa em crise vê condições de reerguimento, ela pode se valer do mecanismo estatal da recuperação judicial. Desse modo, ainda que o Estado não auxilie com ativos, a Lei 11.101 pode ajudar a empresa a se reinserir no mercado.