04/12/2019 às 00h00 com informações de Folha de S.Paulo

MP dá ao governo o poder de decidir quem poderá parcelar dívidas

A MP (medida provisória) do Contribuinte Legal, editada pelo presidente Jair Bolsonaro em outubro, dá poderes ao Executivo de celebrar acordos com contribuintes em débito com o fisco utilizando critérios elaborados pelo próprio governo e sem aval do Congresso. 

Para especialistas consultados pela Folha, a norma concede poderes excessivos ao Executivo e permite que o governo adote critérios arbitrários para definir a quem vai dar o benefício de um acordo para sanar dívidas com descontos, o que pode estimular situações de favorecimento.

A MP, que ainda precisa ser aprovada pelo Congresso para virar lei, regulamenta a chamada transação resolutiva de litígio, que está prevista no Código Tributário Nacional desde 1966, mas nunca foi aplicada.

“Sempre existiu uma problemática sobre como regular essa negociação porque os bens públicos são da coletividade e não podem ser liberados para terceiros por conveniência do agente público. O governo não pode unilateralmente decidir, por exemplo, não fazer uma cobrança de imposto”, diz o tributarista Guilherme Guimarães Oliveira.

“Abrir mão de receita é algo grave, e geralmente é um poder que se delega ao Legislativo. Todos os Refis, por exemplo, foram aprovados pelo Congresso. Agora, a MP autoriza genericamente o Executivo a fazer isso. É pouco saudável do ponto de vista normativo”, diz Luca Salvoni, sócio do escritório Cascione. 

O texto da norma afirma que os acordos poderão ser assinados nos casos em que exista dívida ativa do contribuinte com a União e em caso de contenciosos tributários considerados relevantes pelo Ministério da Economia.

A dívida ativa é o título por meio do qual a União cobra tributos na Justiça, em geral depois que o contribuinte perde os recursos na esfera administrativa.

Nesses casos, a MP prevê que a União possa conceder até 70% de desconto sobre os valores dos débitos classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação pela PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional). O pagamento poderá ser feito em até cem meses. Segundo o governo, esses benefícios poderiam chegar a 1,9 milhão de contribuintes, cujas dívidas superam R$ 1,4 trilhão.

Para as negociações em que o débito fiscal estiver relacionado a um contencioso, o texto da MP também permite ao governo dar descontos sobre o valor da dívida e parcelar o pagamento em até 84 meses.

O texto prevê dois tipos de acordo: por meio da adesão do contribuinte devedor aos critérios estabelecidos em portaria da PGFN nesta sexta-feira (29) ou de acordos individuais, propostos pelo contribuinte ao governo ou vice-versa.

Pela portaria, a União já pode fazer acordos com contribuintes que tenham dívidas totais superiores a R$ 15 milhões em casos de capacidade insuficiente de pagamento.

Também há a opção de fazer a tratativa com empresas em recuperação judicial ou falidas e em caso de dívida suspensa por decisão judicial, nesse caso desde que o montante supere R$ 1 milhão.

O texto também incluiu a possibilidade de o devedor utilizar precatórios federais para amortizar sua dívida. Para o advogado Rodrigo Prado, sócio do escritório Felsberg, o ponto traz uma inovação.

Na opinião do advogado tributarista Hugo Machado Segundo, professor da Universidade Federal do Ceará, a MP institui uma espécie de Refis, mas não fala em prazos para adesão e vale apenas para quem o fisco decidir conceder o benefício.

“A medida certamente terá validade questionada. O texto fala em negociação do contribuinte com o Executivo, mas a Fazenda e o contribuinte não estão em igualdade de condições. O que deverá acontecer é que os grandes contribuintes serão beneficiados”, afirma ele.

“Os critérios para assinar os acordos, pelo texto da MP, são discricionários. Cabe ali o que o Executivo quiser, há falta de parâmetro. As regras deveriam ser claras, objetivas e isonômicas”, afirma Machado.

Para ele, a norma tem dois pontos inconstitucionais.

“O texto busca isentar autoridades que participam da negociação da transação de qualquer responsabilidade administrativa, salvo se ficar comprovada a má-fé para beneficiar terceiros, mas a Constituição diz que MPs não podem tratar de temas penais. Além disso, o texto diz que, se o contribuinte descumprir o acordo, a União poderá pedir sua falência, o que é matéria processual da qual medidas provisórias não podem tratar.”

Para Luca Salvoni, a concentração de poder pode trazer riscos como o de favorecimento ou corrupção, já que as regras e balizas para a concessão do benefício são definidos pelo próprio Executivo.

“Algum contribuinte pode se sentir lesado por não ter recebido o mesmo tratamento de um concorrente, e isso pode gerar judicialização.”

Apesar disso, Salvoni afirma que a norma busca resolver problemas graves do fisco.

“O texto é útil porque se propõe a reduzir o estoque enorme de passivos de créditos considerados incobráveis ou de difícil recuperação e busca resolver contenciosos antigos, o que é bom. Ainda discutimos débitos do Plano Verão, de 1989. Não tem cabimento.”

“Geralmente a legislação já fixa os critérios de maneira clara. A MP deixa a cargo do Executivo estabelecer quais serão as premissas para o contribuinte fazer um acordo. A administração pública passa a exercer um papel que a rigor é do legislador”, afirma Guilherme Guimarães Oliveira.

“Pelo texto da MP, a administração pública tem carta branca para propor a um contribuinte uma negociação sem trazer a possibilidade de que outro nas mesmas condições possa negociar”, diz.

Para Hugo Machado Segundo, a norma deixa uma brecha para que os acordos individuais celebrados com contribuintes não sejam públicos.

“O texto fala em manter o princípio da isonomia e da transparência, mas os condiciona ao respeito do sigilo fiscal. Na prática, poderemos ter acordos confidenciais, o que compromete a transparência.”

Para Rodrigo Prado, contudo, a MP “caminha na tentativa de aproximar mais fisco e contribuinte para discutir o pagamento de tributos, algo inédito na história do país e que acontece em vários países”.

Procurada, a PGFN disse em nota que a MP “possui compatibilidade plena com a Constituição Federal”.

“A MP 899/2019 prevê expressamente a autorização para que os litígios tributários sejam resolvidos através de acordo entre os contribuintes e a administração pública, bem como limites bastante claros e objetivos paras as concessões por parte da administração tributária.”

Segundo o órgão, o Congresso dará a autorização para que esses acordos sejam realizados ao aprovar a MP e convertê-la em lei, “segundo as balizas objetivas, limites claros e percentuais definidos”.

Para a Procuradoria, “não há que falar em ausência de autorização pelo Congresso ou mesmo ausência de critérios, não podendo olvidar que mesmo as transações individuais deverão observar balizas previstas em ato da PGFN.