A superação do dualismo entre o crédito tributário e a recuperação judicial
Passados 15 anos desde a publicação da Lei nº 11.101/05 (Lei de Recuperações Judiciais e Falências – LRJF), a participação do credor tributário nos processos de insolvência ainda gera intensas discussões, cujos desdobramentos serão abordados nesta série de artigos que irá tratar das experiências e posições da Fazenda Nacional. Neste artigo que inicia a série, iremos tratar do histórico e dos recentes desdobramentos da relação do crédito tributário com a recuperação judicial.
Não há dúvidas de que para a LRJF o crédito tributário é extraconcursal, não se submetendo às negociações dentro do processo e cuja cobrança não é suspensa após o deferimento do processamento da recuperação judicial, devendo ser regularizado para que o plano seja homologado e a recuperação efetivada (arts. 6, §7º e 57 da LRJF e art. 187 do CTN). As dificuldades inerentes ao equacionamento do passivo tributário não passaram despercebidas pelo legislador, que previu no art. 68 da LRJF a instituição de um parcelamento especial pelos credores públicos.
Assim, a LRJF não deixava brechas (ou assim se imaginava): o soerguimento de uma empresa em dificuldade deve necessariamente abarcar a equalização de seu passivo fiscal, de sorte que a par de obter a novação de sua dívida junto aos credores privados, a recuperanda também se encontre em situação regular perante o Fisco. A homologação do plano de recuperação atenderia, a um só tempo, ao princípio da preservação da empresa (art. 47 da LRJF) e à função social da mesma, que passa pelo pagamento de tributos.
Não obstante a clareza da LRJF, a exigência de regularidade fiscal acabou sendo afastada pouco a pouco pelos Tribunais pátrios. Este movimento tornou o passivo tributário figura meramente decorativa nos balanços contábeis de empresas em recuperação judicial, sem qualquer perspectiva de saneamento, fechando todas as portas na relação entre o crédito tributário e a recuperação judicial.
Por um lado, ante a mora dos entes federativos em editarem o parcelamento do art. 68 da LRJF (não obstante a norma do §4º do art. 155-A do CTN), a Corte Especial do STJ (REsp 1.187.404/MT) estabeleceu o entendimento de que esse parcelamento seria direito essencial da empresa que busca a recuperação judicial, sendo o descumprimento do art. 57 da referida Lei decorrência exclusiva da omissão legislativa, não podendo a exigência de Certidão de Regularidade Fiscal figurar como óbice à sua concessão.
O entendimento foi mantido mesmo após a edição do parcelamento específico em âmbito federal (Lei nº 13.043/2014), sob o fundamento de que o mesmo não atendia de maneira suficiente às necessidades das recuperandas.
Por outro lado, o STJ afetou os REsp 1.694.261/SP e 1.694.316/SP à sistemática dos Recursos Repetitivos, submetendo a julgamento a “possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária” (Tema 987), determinando a suspensão nacional de todos os processos em que se discutia essa questão.
O estabelecimento desses entendimentos levou à crise da Execução Fiscal em face de devedores em recuperação judicial, eis que, a uma, não é exigida a certidão de regularidade fiscal (ainda que já superado o óbice, ao menos do ponto de vista da União Federal); e, a duas, não suspenso o processo de execução, também não se permite o seu adequado processamento, já que inviabilizada a constrição patrimonial.
Esse panorama induziu as empresas em crise a ignorarem seu passivo fiscal, o que, somado à duração exacerbada destes feitos[1], tornou o Fisco o financiador das recuperandas, que enquanto isso negociavam e pagavam os credores privados, até mesmo vendendo parte de seu patrimônio (alienação de UPI’s). Assim, quando do encerramento da recuperação judicial ou sua convolação em falência, pouco sobrava para o pagamento das dívidas tributárias, em completa inversão da preferência garantida pelo artigo 186 do CTN.
Veja-se que em âmbito federal, apenas no estado de São Paulo, levantamento feito pelos autores nos sistemas de acompanhamento da Dívida Ativa da União mostra que existem mais de 50 bilhões de reais em dívidas de empresas em recuperação judicial com o Fisco Federal.
Atenta a esse cenário, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, na esfera federal, passou a ampliar os espaços de diálogo e negociação com os contribuintes, incluindo as empresas em recuperação judicial. Trata-se de movimento que se fortaleceu a partir de 2018 com a edição da Portaria PGFN nº 742/2018[2], que trata do Negócio Jurídico Processual no âmbito da cobrança da Dívida Ativa da União, e que teve sequência com a Medida Provisória nº 899, que regulamentou a transação tributária e trouxe dispositivos específicos para as empresas em recuperação judicial.
Posteriormente convertida na Lei nº 13.988/2020, e disciplinada pela Portaria PGFN nº 9.917/2020 (entre outras), a transação tributária tem como um de seus objetivos “viabilizar a superação da situação transitória de crise econômico-financeira do sujeito passivo, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora e do emprego dos trabalhadores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (art. 3º, inc. I, da Portaria).
Estão disponíveis diversas modalidades de transação (inclusive uma específica para a crise decorrente da pandemia da COVID-19), que permite benefícios como o parcelamento em até 7 anos e o desconto de até 50% do valor total da dívida, além de, no caso da transação individual, uma personalização do acordo a fim de se adequar à situação econômica da devedora[3]. Assim, pelo menos no âmbito federal não há mais argumentos que justifiquem a homologação do plano de recuperação judicial de empresa que não esteja com seu passivo fiscal regularizado.
Essas mudanças não passaram despercebidas pelos Tribunais pátrios, que nesse último ano vêm proferindo reiteradas decisões que alteram o cenário então existente, concluindo que o processo de soerguimento de uma empresa em dificuldades passa necessariamente pela regularização de seu passivo fiscal.
O Supremo Tribunal Federal finalmente se manifestou sobre a questão, em decisão liminar proferida na Reclamação nº 43.169, na qual o Min. Relator declarou inexistir o caráter draconiano vislumbrado no art. 57 da LRJ e reconheceu que o fundamento que outrora justificou o REsp 1.187.404/MT não mais subsistia, eis que a mora na regulamentação do art. 68 da LRF já havia sido superada pelos atos que permitem a negociação com o Fisco.
O mesmo posicionamento extraído da decisão do STF já vinha encontrando eco no STJ, conforme se verifica na decisão monocrática proferida no AREsp nº 1.593.832/SP, que determinou à devedora a apresentação de certidões negativas de débitos tributários para fins de concessão da recuperação judicial. À essa mudança de entendimento também aderiu o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que finalizou o julgamento do Incidente de Inconstitucionalidade nº 0048778-19.2019.8.16.0000, o declarou a constitucionalidade do art. 57 da Lei nº 11.101/05 e art. 191-A do CTN.
No referido julgamento foi apontada como necessária, adequada e proporcional, em sentido estrito, a exigência da certidão de regularidade fiscal, na medida em que a recuperação da empresa deve compreender todos os seus débitos, e não apenas aqueles que se submetem ao plano.
E os Tribunais de Justiça de São Paulo (Agravo de Instrumento nº 2140202-95.2020.8.26.0000) e do Rio de Janeiro (Agravo de Instrumento nº 0046087-14.2020.8.19.0000[4]), por seu turno, esposaram semelhante compreensão, afirmando que “com a promulgação de legislações a permitir parcelamento de débitos fiscais, não mais se justifica o não cumprimento da regra estabelecida no art. 57 desse diploma legal”.
Não há dúvidas de que a LRJF representou, ao tempo de sua edição, uma importante inovação ao privilegiar o princípio da preservação da empresa. Tal soerguimento, contudo, não pode ocorrer sem uma efetiva proteção dos credores do devedor em situação de dificuldades, onde se insere o credor tributário. É inegável que estamos em um momento de superação do dualismo entre a Fazenda Nacional e o devedor em recuperação judicial, com diversos mecanismos de negociação disponíveis. Agora, cabe às empresas em crise uma reação positiva no sentido de reconhecer os esforços do Fisco e os novos paradigmas, buscando a regularização de seu passivo fiscal.