Pequenos produtores rurais têm dificuldades de acesso à recuperação judicial
O uso do mecanismo da recuperação judicial ainda é uma realidade distante para os pequenos produtores rurais brasileiros, em especial àqueles que praticam a agricultura familiar. Embora a legislação sobre o assunto dê tratamento diferenciado às microempresas e tribunais como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) venham flexibilizando as regras da recuperação judicial no campo, os pequenos produtores encontram barreiras como a informalidade, o registro, a burocracia e os custos. No Congresso Nacional tramita alterações para facilitar o acesso, como a possibilidade de o produtor rural pessoa física pedir a recuperação judicial.
Segundo o Censo Agropecuário de 2017 feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) cerca de 70% dos estabelecimentos rurais têm de 1 a 50 hectares, ou seja, são considerados pequenos produtores. Além disso, 77% dos estabelecimentos rurais são classificados como agricultura familiar, o que soma 3,9 milhões de empreendimentos em todo o Brasil.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar (Contraf) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) informaram ao JOTA que não há registros entre os seus associados de uso da recuperação judicial. Segundo as entidades, apesar do número expressivo de produtores pequenos no país, a recuperação judicial para esse grupo esbarra na informalidade e em uma série de travas burocráticas.
Especialistas ouvidos pelo JOTA explicam que, para começar, só é possível requerer a recuperação judicial quando há registro na Junta Comercial e, com isso, um Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). No entanto, a lei faculta ao produtor rural fazer ou não o registro para exercer a atividade econômica, ao contrário, por exemplo, das empresas urbanas, que só podem funcionar a partir do registro.
De acordo com o coordenador da Contraf, Marcos Rochinski, 95% dos agricultores familiares brasileiros não têm CNPJ e comercializam os seus produtos utilizando o Cadastro de Pessoa Física (CPF). Os 5% que têm o registro exercem algum tipo de agroindústria familiar, como algum tipo de beneficiamento do produto agrícola.
Rochinski explica que a agricultura familiar de uma forma geral trabalha na informalidade. Uma das explicações está na dificuldade de fazer o registro em uma Junta Comercial porque é distante da propriedade. A outra é a burocracia para a abertura de uma empresa, o que exige assistência profissional e um custo que o agricultor familiar não tem como arcar. Rochinski explica que até hoje alguns estados brasileiros não regulamentaram a emissão do bloco de notas da venda das produtos da agricultura familiar, o que dificulta, inclusive o acesso desses grupos à Previdência.
“Para criar uma PJ hoje é muita burocracia. Você imagina um agricultor lá da uma comunidade a 60 km da sede, que não tem orientação, que não tem internet, enfim, vai passar por um processo sem ter alguém que oriente… ele não vai. A gente está muito distante de um agricultor familiar ser uma empresa, quanto mais pedir uma recuperação judicial”, explica.
Alteração legislativa
Segundo especialistas ouvidos pelo JOTA, na tentativa de facilitar o acesso à recuperação judicial para o pequeno produtor rural, o Projeto de Lei 4.458/2020, que altera a Lei de Falências, propõe que o produtor rural pessoa física possa pedir recuperação judicial em um plano especial desde que o valor das dívidas sujeitas à recuperação não exceda a R$ 4,8 milhões.
“O artigo 70-A da proposta [de alteração da Lei de Falências] vai trazer a possibilidade de o produtor rural pessoa física pedir recuperação judicial com plano especial e com regras específicas. Pode pedir isso quem tem endividamento de até R$ 4,8 milhões. Assim, deixa as regras do jogo fixadas até para facilitar a discussão”, afirma a advogada Renata Oliveira, sócia da área de contencioso do escritório Machado Meyer.
No entanto, os especialistas alertam que mesmo com a mudança legislativa, a recuperação judicial pode continuar a não ser atrativa para os pequenos produtores por causa da informalidade, da burocracia e dos custos. Eles lembram, por exemplo, que embora tenha um mecanismo facilitador de recuperação judicial para microempresas na Lei de Falências, o instrumento é pouco utilizado.
“A conclusão é que a maioria desses empresários pequenos, barzinho, lojinha, prefere, se falir, fazer um encerramento informal das atividades, sem passar por recuperação judicial ainda que seja uma recuperação judicial que a lei tenha regras próprias, mais céleres e até menos custosas”, explica a advogada Renata Oliveira.
Um estudo do Observatório da Insolvência – iniciativa do Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência (NEPI/PUC-SP) e da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) – mostrou que de 906 processos de recuperação judicial analisados no estado de São Paulo entre janeiro de 2010 e julho de 2017, apenas 92 (10,1%) foram requeridos por microempresas e 94 (10,3%) requeridas por empresas de pequeno porte.
Uma das hipóteses trazidas pelo estudo é que, mesmo entrando em crise, as micro e pequenas empresas não fariam uso da recuperação judicial por causa do custo do processo, tanto em relação às despesas diretas com custas, advogados, assessores e administrador judicial, como pelo custo reputacional do agricultor e possível dificuldade de acesso a crédito.
Superior Tribunal de Justiça: força da pessoa física
Na análise de especialistas, a recuperação judicial vem se tornando um importante aliado para os produtores rurais e, embora ainda pareça distante para os pequenos produtores, algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm aproximado o instrumento das atividades econômicas rurais. As decisões ainda não estão em repetitivo, portanto, não são vinculantes.
No último dia 6 de outubro de 2020, a 3ª Turma do STJ entendeu, por maioria de votos, que uma sociedade empresária agrícola pode pedir recuperação judicial provando a atividade econômica ainda exercida como pessoa física. Ou seja, de acordo com a Lei de Falências, uma empresa só pode pedir a recuperação a partir de dois anos de exercício da atividade econômica, assim, o STJ entendeu que o produtor rural pode provar esses dois anos de exercício mesmo quando a atividade ainda era exercida como pessoa física. A 4ª Turma do STJ, no dia 5 de novembro de 2019, proferiu o mesmo entendimento.
Nos tribunais de Justiça pelo país há divergências. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, entende como o STJ. Já os tribunais de Goiás e de Mato Grosso entendem que o registro é constitutivo, isto é, a empresa só nasce a partir da inscrição na Junta Comercial, portanto, a recuperação só pode ser pedida depois do prazo de dois anos estipulado em lei.
Especialistas destacam que, se, por um lado, para os produtores rurais a possibilidade de comprovar o exercício da atividade econômica enquanto pessoa física é positivo porque permite o acesso desse grupo à recuperação judicial, por outro lado, as instituições financeiras reclamam da insegurança jurídica que a decisão traz, uma vez que o crédito foi feito em nome da pessoa física, sem os benefícios de negociação de uma recuperação judicial reservada às empresas.
Os advogados Renata Oliveira e João Reis, sócios da área de contencioso do escritório Machado Meyer, explicam que o julgamento do STJ pode trazer insegurança jurídica, uma vez que o tribunal muda a regra do jogo depois da contratação do crédito. “Cria uma insegurança jurídica porque isso [de o produtor rural usar o tempo de pessoa física para comprovar atividade e pedir recuperação judicial] não estava no radar das instituições financeiras na hora da concessão das linhas de crédito”, explica Reis.
“Isso ocorre porque o banco como credor de uma pessoa física sabe que essa pessoa não vai poder bater na porta do Judiciário e dizer, ‘quero uma recuperação judicial’, ‘quero uma carência’, ‘quero apresentar um plano de recuperação, ‘quero um haircut (desconto na dívida’), etc. A pessoa física não pode fazer isso”, complementa Oliveira.
Dessa forma, os advogados acreditam que as mudanças propostas pelo PL 4458/2020 podem trazer mais segurança porque, ao incluir o produtor rural pessoa física com dívidas de até R$ 4,8 milhões, e com regras específicas para a recuperação deste grupo, as regras ficam mais claras e diminui a insegurança jurídica.