30/06/2021 às 00h00 com informações de Jota

Contribuinte pode perder isenção sem ser condenado por crime de sonegação fiscal

A 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais Câmara Superior (CSRF), última instância do Conselho Administrativos de Recursos Fiscais (CARF), decidiu por maioria, em março desde ano de 2021, no julgamento do processo nº 11516.006132/2008-17, que os contribuintes podem perder o direito a isenções e benefícios fiscais, sem que haja condenação por crime contra a ordem tributária.  Quatro conselheiros acompanharam o relator e três divergiram, votando para que a perda de isenções e benefícios só pudesse ocorrer após sentença condenatória.

O caso foi analisado pela CSRF via Recurso Especial de Divergência, interposto pelo contribuinte. O apelo centralizou a discussão no art. 59 da Lei nº 9.069/1995[1], o qual prevê a perda de incentivos e benefícios ligados à redução ou isenção tributária diante da “prática de atos que configurem crimes contra a ordem tributária”. O contribuinte sustentou que, mesmo que as irregularidades apuradas pela Fiscalização caracterizem, “em tese”, crime contra a ordem tributária, sem condenação judicial não há como fazer incidir tal artigo de lei.

A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), contra-argumentou no sentido que o dispositivo legal se refere à “prática de atos que configurem crimes” e não à condenação por crime contra a ordem tributária e que, se houvesse a intenção de subordinar a perda dos incentivos ou benefícios fiscais aos casos em que houvesse condenação judicial, certamente a lei teria se referido a esse requisito especificamente, ao estabelecer no dispositivo que “a condenação por prática de crimes contra a ordem tributária importaria a perda dos incentivos ou benefícios”.

Em uma breve síntese, a Receita Federal ao fiscalizar a Recorrente, entendeu que a empresa teria perdido o direito de utilizar crédito presumido de IPI, benefício concedido aos exportadores, que funciona como uma compensação pelos custos tributários de PIS e COFINS e tem como objetivo desonerar a cadeia produtiva, para aumentar a competitividade das empresas brasileiras no mercado externo.

O Fisco constatou que a empresa fiscalizada supostamente teria superfaturado a aquisição de produtos no mercado interno — que compõe o cálculo para o crédito presumido — e, desta forma, teria aumentado irregularmente os valores decorrentes do benefício. Consequentemente, teria reduzido as quantias a pagar em PIS e COFINS ao governo, o que, caracterizaria crime previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90.

A controvérsia da questão, então, seria a entender o alcance da expressão “prática de atos que configurem crime contra a ordem tributária”, trazida na parte inicial do art. 59 da Lei 9.069/1995, isto é, na definição da necessidade de sentença penal condenatória para fins da aplicação de tal sanção.

O CARF concluiu que não há necessidade de prévia condenação judicial.

Dentre os motivos que embasaram, foi o de que “para que determinada conduta possa ser configurada como crime (fato típico e antijurídico), basta que se adeque a um tipo penal e não esteja ao abrigo de uma das excludentes de ilicitudes – legitima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito, conforme art. 19 do Código Penal”. Para o relator, “Por demais óbvio, que, dada a natureza da infração tributária, essas excludentes de ilicitudes jamais vão estar presentes”.

Sob o ponto de vista penal, a decisão não encontra respaldo legal, nem jurídico.

Antes de mais nada, o Ministério Público é o titular da ação penal pública incondicionada, universo onde os crimes contra a ordem tributária estão inseridos. Então, em um primeiro momento, é o Representante Ministerial quem tem legitimidade para enquadrar se determinada conduta pode configurar crime, isto é, analisar se os requisitos apontados no voto do CARF estão presentes, dentre outros, e oferecer denúncia. Em um segundo momento, cabe ao Juiz, após a instrução processual, julgar se de fato a conduta apurada é antijurídica, típica e culpável.

Portanto, nos termos do que foi decidido, os contribuintes ficam sujeitos a interpretações do Fisco, o qual não detém a competência para analisar o aspecto criminal das condutas que apura. Trata-se de clara violação à presunção da inocência (ninguém será considerado culpado até que se prove o contrário) e ao devido processo legal (ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal).

Afora a questão do enquadramento ou não em crime, cuja legitimidade pertence aos sujeitos acima mencionados, não é rara a discussão nos Tribunais Brasileiros sobre excludentes de ilicitude nos casos de crime contra a ordem tributária. Então, apesar de não ser comum, não é correto afirmar que tais “jamais vão estar presentes”, como consignado no voto. Por fim, é sempre necessário que haja a instrução processual para confirmar se de fato o crime ocorreu nos moldes inicialmente apurados e se é punível, o que, conforme colocado, cabe de forma exclusiva ao Judiciário.

A decisão, nos parâmetros em que foi dada, confere preocupantes poderes ao Fisco, que pode punir empresas a perda de importantes – e necessários – benefícios e isenções, com base em indícios, que muitas vezes não possuem serventia nem para o oferecimento de denúncias criminais.

Aqui, reforça-se óbvio argumento de que nem todo processo criminal por sonegação fiscal resulta em condenação. São muitas as circunstâncias que precisam ser analisadas, ponderadas e provadas.

A CSRF, na decisão dada, defendeu a “absoluta independência” entre a responsabilidade penal, tributária e administrativa. Deste modo, as sanções penais dependeriam do Judiciário, ao passo que as sanções de natureza administrativa ou tributária independeriam do resultado do processo criminal, salvo se neste houver absolvição por negativa de autoria ou inexistência do fato imputado. Porém, tal entendimento por si só já evidencia que o Fisco atribui a si poder que não possui, em violação à independência dos Poderes, já que cabe única e exclusivamente ao Poder Judiciário a apuração e condenação pela prática de crimes.

O entendimento é preocupante e pode implicar em severas repercussões ao contribuinte, que poderá perder isenções e benefícios com base em meras presunções da Autoridade Fazendária, em clara violação à presunção da inocência e ao devido processo legal.