21/03/2022 às 00h00 com informações de Jota

Entendimento do Carf sobre concomitância de multas vai na contramão da Justiça

Com decisões recentes contra os contribuintes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a concomitância das multas isolada e de ofício por falta de recolhimento de estimativas vem seguindo na direção oposta na esfera judicial. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e da Justiça Federal tem declarado a ilegalidade da concomitância das penalidades.

Enquanto, em posicionamentos recentes, o Carf entendeu que as multas isoladas e de ofício são penalidades para infrações distintas, para o STJ aplica-se a esses casos o princípio da consunção, em que uma penalidade absorve a outra. Assim, a multa de ofício absorveria a multa isolada.

Em fevereiro, a 3ª Turma da Câmara Superior do Carf julgou uma série de casos em que formou maioria para permitir a concomitância das penalidades. Entre eles, estava o processo 10166.731074/2014-66, da Expressa Distribuidora de Medicamentos Ltda.

A nova posição surpreendeu os contribuintes, pois, em agosto de 2021, a 1ª Turma da Câmara Superior afastou a concomitância das multas no processo 10882.721522/2017-71, da Kingstar Colchões Ltda., revertendo o entendimento até então pró-fisco. A decisão foi proferida pelo desempate pró-contribuinte.

A expectativa entre os advogados que atuam no Carf era que o tribunal passasse a adotar um entendimento alinhado com o do Judiciário, de impossibilidade da concomitância. No entanto, a discussão sobre o tema acabou migrando de turma em razão da Portaria Carf/ME 12.202, que, em outubro do ano passado, estendeu à 2ª e à 3ª Turmas da Câmara Superior a competência para julgar temas antes exclusivos da 1ª Turma, sob a justificativa de equilibrar a quantidade de processos em estoque.

A impossibilidade da concomitância das multas é matéria sumulada no Carf. Segundo a Súmula 105, “a multa isolada por falta de recolhimento de estimativas, lançada com fundamento no art. 44 § 1º, inciso IV da Lei nº 9.430, de 1996, não pode ser exigida ao mesmo tempo da multa de ofício por falta de pagamento de IRPJ e CSLL apurado no ajuste anual, devendo subsistir a multa de ofício”.

Contudo, com a edição da lei 11.488/2007, que alterou o artigo 44 da lei 9.430, uma corrente no tribunal administrativo passou a defender que o enunciado da súmula só se aplicaria às penalidades lançadas com base na redação original do dispositivo, ou seja, antes de 2007. Para conselheiros defensores dessa interpretação, a nova redação teria deixado claro que se trata de penalidades para infrações distintas.

O entendimento foi adotado pela 3ª Turma em fevereiro. Para os conselheiros, a impossibilidade de concomitância prevista na Súmula Carf 105 só se aplicaria a casos anteriores a 2007, em razão de alteração legislativa sobre o tema.

Bis in idem

“[Os que defendem a possibilidade de concomitância] acham que seriam duas obrigações independentes. A obrigação de antecipar o imposto mensalmente [recolhimento de estimativas, cujo não pagamento atrairia a multa isolada] seria autônoma em relação ao pagamento do imposto no final do ano [cujo descumprimento enseja a multa de ofício]. Mas tem toda uma lógica do Imposto de Renda de que realmente teria uma unicidade, em que o fato gerador anual absorve os fatos geradores mensais”, acredita o tributarista Júlio Assis, sócio do Ferraz de Camargo e Matsunaga Advogados.

“Os tribunais têm decidido afastar a concomitância, pois entendem que geraria bis in idem [duas punições para a mesma conduta], o que é proibido e seria uma penalidade desproporcional”, comenta Alexandre Monteiro, do Bocater Advogados.

O STJ aplica aos casos de concomitância das multas isoladas e de ofício o princípio da consunção, originário no Direito Penal. Pelo princípio, a infração mais grave absorve a de menor gravidade. Por analogia, no Direito Tributário, a penalidade mais gravosa (multa de ofício) absorve a mais leve (multa isolada). A posição é pacificada na Segunda Turma da Corte.

O entendimento foi expresso originalmente no Recurso Especial (REsp) 1.496.354/PR, julgado em 2015, de relatoria do ministro Humberto Martins. Foi adotado, ainda, no REsp 1.878.192/SC (2021, ministro Herman Benjamin); REsp 1.603.525/RJ (2020, ministro Francisco Falcão) e REsp 1.815.945/RS (2019, ministro Sérgio Kukina).

Na Justiça Federal, magistrados têm seguido o entendimento firmado no STJ. Há precedentes favoráveis aos contribuintes em todos os Tribunais Regionais Federais (TRFs).

Pacificação

“Tem precedentes favoráveis e a tendência é que o Judiciário reconheça a tese favorável aos contribuintes”, afirma Alessandro Cardoso, do Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso Advogados. O tributarista criticou a alteração na competência das turmas do Carf, que, segundo ele, criou insegurança jurídica para o contribuinte que recorre na esfera administrativa.

“Não é uma boa política, em termos de lógica de julgamento, fazer essa transferência de matérias entre as turmas. Primeiro, porque as turmas são especializadas. Segundo, porque o objetivo maior da Câmara Superior é pacificar o entendimento do Carf com relação à interpretação da legislação tributária federal. A partir do momento em que se transfere a competência e tem duas turmas diferentes julgando o mesmo tema, abre espaço para isso, para uma situação de insegurança jurídica para o contribuinte”, avalia.

Para Alexandre Monteiro, na falta de um entendimento consolidado no Carf, o contribuinte tende a se voltar para a via judicial. “Acho que as defesas vão continuar acontecendo no âmbito administrativo e, no caso de derrota, o que vejo é o contribuinte levando essa questão para os tribunais”, afirma.

Na visão de Júlio Assis, a questão só será pacificada com eventual decisão do STJ na sistemática dos recursos repetitivos, o que vincularia o Carf. “Seria interessante para que se pudesse levar essa pacificação ao Carf. Seria a única forma de atenuar essa oscilação. As decisões do STJ têm sido bem robustas quando trazem essa teoria da consunção”, diz.