Só 1,9% dos casos do Carf empataram em 2022
Tributaristas contestam a proposta da equipe econômica do governo de recriar o chamado “voto de qualidade” pró-Fisco no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o “tribunal da Receita” que analisa contestações tributárias de forma administrativa. Conselheiros que representam os contribuintes contestam a versão de que parte do estoque de R$ 1 trilhão em processos sem julgamento no órgão foi acumulado por conta do fim da regra que previa que, em caso de empate, o Fisco ganharia a causa.
De acordo com dados do Carf, em 2022 (até outubro), houve empate em apenas 1,9% dos casos julgados — e a decisão foi a favor do contribuinte, já que não havia mais o voto de qualidade pró-Fisco. O Carf não informa, porém, o valor desses processos, e o governo argumenta que esses são os maiores casos. Advogados atuantes no Carf apontam outras causas para o aumento dos estoques de valores dos processos.
— O Carf praticamente paralisou suas atividades durante a pandemia. Em abril de 2020, foi instituída a modalidade de julgamento virtual, basicamente para processos com um teto de R$ 1 milhão e com pautas reduzidas. Apenas em agosto de 2020, esse limite aumentou para R$ 8 milhões e, mesmo assim, o estoque de processos seguiu em progressão aritmética. Posteriormente, em janeiro e março de 2021, esses valores de alçada foram aumentados. Essa situação de limite de alçada acabou, apenas, ao final de 2021 — afirma Luiz Gustavo Bichara, sócio do Bichara Advogados.
Formação paritária
Ele lembra que, além disso, houve em 2022 a suspensão da quase totalidade das sessões de julgamento, por conta da adesão dos conselheiros da Fazenda à mobilização de auditores fiscais para regulamentação do bônus por autuações.
O Carf é um tribunal administrativo da Receita Federal, que discute autuações feitas pelo órgão e que os contribuintes não concordam. O tribunal tem formação paritária, ou seja, cada turma de julgamento é formada igualmente por representantes do Fisco e dos contribuintes.
Em 2020, o Congresso estabeleceu que, em caso de empate, a vitória é do contribuinte. O governo Lula, como parte das medidas de ajuste nas contas, decidiu voltar atrás com essa regra. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, argumenta que o modelo de dar prioridade para os contribuintes só existe no Brasil. A medida provisória (MP) foi anunciada na semana passada.
A Fazenda afirma que o estoque de mais de R$ 1 trilhão parado no órgão cresceu por conta do fim do voto de qualidade. Esse número, que era de R$ 582 bilhões em 2020, cresceu ao longo da pandemia.
'Claro retrocesso’
Nos últimos meses, tributaristas que têm causas no tribunal administrativo vêm afirmando que as motivações do aumento do estoque de processos são os limites de valor criados para julgamentos virtuais e a paralisação dos auditores da Receita. Essa é a mesma avaliação dos conselheiros ligados aos contribuintes, que falam reservadamente sobre o caso, e de advogados.
— E o orçamento do Carf teve sucessivas reduções no governo passado, caindo, de 2021 para 2022, de R$ 22,5 milhões para R$ 11 milhões, sem aqui dar ênfase ao déficit de servidores públicos no então Ministério da Economia, grande causa da lerdeza no processamento dos recursos no Carf — diz Bichara.
Para Igor Mauler Santiago, doutor em Direito Tributário e sócio-fundador do Mauler Advogados, o retorno do voto de qualidade revela falta de criatividade do novo governo:
— Dar ao Fisco ou aos contribuintes a vantagem do empate apenas desloca a insatisfação. Se é para mudar, melhor seria excluir a multa e manter o crédito suspenso, sem necessidade de liminar ou garantia, até o fim da ação judicial.
Fábio Lunardini, tributarista do Peixoto & Cury Advogados, afirma que a MP “reverte um histórico pleito dos contribuintes” em relação ao voto de desempate.
— Trata-se de claro retrocesso em prejuízo dos contribuintes, que deve ser objeto de debates quando da tramitação da MP no Congresso Nacional — avalia.
Mais litígios
Douglas Guilherme Filho, coordenador tributário do escritório Diamantino Advogados Associados, afirma que o fim do voto de qualidade no Carf representará grande insegurança a toda sociedade. Segundo ele, nos últimos anos, a jurisprudência do órgão tem se consolidado em favor dos contribuintes, em teses que antes da implementação desse critério eram sempre decididas em favor do Fisco.
— Tal medida tende a aumentar o número de litígios judiciais, já que os pagadores de tributos terão de se socorrer ao Poder Judiciário para anular as autuações fiscais — diz.